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Prólogo
de Transblanco (em torno a Blanco
de Octavio Paz)
de Octavio Paz y Haroldo de Campos
Editora Guanabara, Río de Janeiro, 1986
p. 11-17
"Blanco/Branco: Transblanco
A verdadeira tradução é
transparente, não cobre o original, não lhe
deita sombras, mas, antes, faz com que caia em toda sua plenitude
sobre este a língua pura, como que fortalecida por sua
mediação.
Walter Benjamin.
I.
Nem sempre a poesia nasce do tácito diálogo do poeta
com a linguagem. Há ocassiões em que se necessita
do diálogo com outro poeta, a intertextualidade não
apenas dos versos, mas também dos fazedores de versos. Tal
foi o caso do "Rubayat", que, para existir na forma pela
qual é conhecido no Ocidente, precisou da conjunção
de um poeta persa do século XI (Omar Khayyam) e um poeta
vitoriano que vivia em Oxford (Edward Fitzgerald). Esta dúplice
paternidade de um determinado texto não exige nenhuma afinidade
especial entre os produtores. É possível conjeturar
(como o fez Borges) que, se se tivessem conhecido pessoalmente,
Khayyam e Fitzgerald não se teriam compreendido. Unidos inextricavelmente
no texto inglês do poema, é quase impossível
imaginá-los amigos na mera realidade.
II.
Não é este o caso da conjunção estelar
que une o poeta e crítico mexicano Octavio Paz com o poeta
e crítico brasileiro Haroldo de Campos no campo magnético
de um poema do primeiro, "Blanco", que o segundo haverá
de metamorfosear em "Branco". Vale dizer: em outro poema,
de outra textura e outra radicalização fónica,
embora incrivelmente paralelo ao texto inicial. Se no caso de Khayyam/Fitzgerald
era possível conjeturar a propósito da indiferença
de um pelo outro e dar essa presunção como certa,
aqui a afinidade eletiva mais notável os propele, um em direção
ao outro, e a partir precisamente de "Blanco" e de uma
correspondência excepcional urdida sobre este texto. A intertextualidade
se converte em intervivencialidade.
III.
Para assinalar ainda mais a excepcionalidade do caso, esta aproximação
e fusão se produzem entre duas áreas do mundo americano
que costumam desconhecer-se com olímpica desatenção.
Porque a marca deixada pela colonização não
foi de todo apagada pela independência, nós, americanos
espanhóis e americanos brasileiros, continuamos de costas
uns para os outros, contemplando enfeitiçados as velhas ou
novas metrópoles. Só de raro em raro uma sor Juana
dialoga polemicamente com um texto do padre Vieira para produzir
sua Carta atenagórica e demonstrar que a teologia
não era só província masculina. Ou Gregório
de Matos recolhe do barroco satírico espanhol as mesas munições
retóricas que servem ao peruano Juan del Valle Caviedes para
seu Diente del Parnaso. Ou José de Alencar, com O
gaúcho, se incorpora ao vasto corpus da literatura
rio-platense, não somente para render-lhe homenagem, mas,
também, para lê-lo de viés. O utopismo americanista
de Rodó encontrará um inesperado eco em Canaã,
de Graça Aranha, da mesma maneira que, alguns anos mais tarde,
os romances sociais de Jorge Amado (em sua primeira fase) seriam
seguidos com avidez na Argentina. Até mesmo no campo diplomático,
os contactos de Alfonso Reyes, durante sua permanência no
Rio de Janeiro, com poetas do porte de um Manuel Bandeira haverão
de deixar algo mais do que ecos de previsíveis banquetes
e brindes. A prolongada residência de Gabriela Mistral em
Petrópolis avizinha a aura da grande poesia feminina de língua
espanhola ao português do Brasil. Os próprios irreverentes
antropófagos brasileiros dos anos vinte encontrarão
escritores hispano-amricanos dignos de serem salvos da panela de
guisado: Mário de Andrade, numa série de luminosos
artigos sobre a nova literatura argentina (1927-1928), chegará
à conclussão de que, com a morte de Ricardo Güiraldes,
o jovem Jorge Luis Borges (sim, o Borges da fase vanguardista) é
o melhor escritor argentino. Por seu lado, Oswald de Andrade haverá
de reconhecer mais de uma afinidade secreta entre a poesia de seu
João Miramar e os Veinte poemas para ser leídos
en un tranvía e Calcomanías, do poeta argentino
Oliveiro Girondo.
IV.
Estas poucas andorinhas não fazem um verão. A incompreensão
e o desconhecimento continuam, apesar de esforços recentes
de pessoas do talhe de Antônio Cândido e Haroldo de
Campos. O signatário deste prólogo vem tentando, por
seu lado e desde 1950 pelo menos, aproximar ambas as culturas para
evidenciar seu increível paralelismo. Com a conjunção
estelar de "Blanco"/"Branco" se passa do terreno
do discurso crítico, ainda tímido, ao da prática
poética mais luminosa. O salto é inconmensurável.
V.
Uma afinidade secreta unia previamente estes dois poetas, que só
começam a dialogar efeitivamente em 24 de fevereiro de 1968.
Muito antes, em suas leituras paralelas da Modernidade e em particular
dos textos de Mallarmé, e mais especificamente de Um coup
de dés, eles tinham iniciado, sem o saber, esta futura
colaboração. Noutros textos poéticos (penso
sobretudo nos de Ezra Pound e de Vicente Huidobro), também
tinham dialogado avant la lettre estes poetas-críticos.
Por isso não é de estranhar que a correspondência
entre ambos (recolhida neste volume) vá diretamente ao assunto
que lhes concerne, sem perda de tempo e espaço com negaças.
A primeira carta de Octavio Paz (14/março, 1968) é
explícita no assinalar aquilo que conhece e aquilo que não
conhece, relativamente a seus companheiros da poesia concreta brasileira.
(Não é muito, mas é suficiente para um crítico
tão penetrante). Por esta e outras cartas vemos que havia
lido aqueles textos em traduções, para o inglês
e para o francês: é tal a inacessibilidade de livros
brasileiros no mercado hispânico. Mas Haroldo de Campos já
em sua primeira carta havia anunciado a remessa dos textos principais
dos concretistas, no original, e continuaria alimentando bibliograficamente
seu correspondente. Na carta de Paz há uma alussão
à analogia entre seu "Signos en rotación"
e as Galáxias de Haroldo. Esta relação,
longe de ser puramente verbal, aponta secretamente para a fonte
comum: a visão cosmológica que subjaz ao poema de
Mallarmé. Com estas duas cartas, está estabelecido
o diálogo, e no mais alto nível possível.
VI.
O restante da correspondência é uma maravilha de descobrimento
incessante de afinidades eletivas. Enquanto Paz (terceira carta,
sem data) admite ter escrito os "Topoemas" como homenagem
à poesia concreta, passando sem pestanejar do papel de mestre
ao de discípulo, Haroldo de Campos se irá impregnando
cada vez mais de "Blanco", até produzir uma tradução
que é transcriação, e cuja epifania é
por ele próprio celebrada em uma carta (9/fevereiro, 1981)
que também inclui um breve poema paródico-autobiográfico
que culmina nestas linhas:
Tomei a mescalina de mim mesmo
e passei esta noite em claro
traduzindo "Blanco" de Octavio Paz
VII.
Na mesma carta, Haroldo de Campos fala do lento processo de entranhamento
da tradução como de uma "diamantização".
A expressão é feliz. E o é ainda mais para
o leitor desta correspondência, que permite acompanhar passo
a passo, na voz de ambos os protagonistas, a paulatina diamantização
de "Blanco" em "Branco". As cartas 9 e 10 (H.
de Campos, 12/julho, 1978; 9/fevereiro, 1981) tornam a revisar minuciosamente
o problema do título. Em espanhol, blanco significa
a cor e também o alvo (do arqueiro); em português,
branco tem somente a primeira significação.
Passaram-se quase três anos, e a diamantização
continua sua segura progressão. Por seu lado, Paz, assim
que recebe a primeira versão completa, comenta-a com lúcida
minúcia (26/março, 1981), suscitando, com isso, mais
comentários de seu colega (20/abril, 1981) e novas observações
suas (7/maio, 1981) sobre a materialidade fônica da poesia;
vai-se, assim, tecendo e retecendo este diálogo que culminará
no poema em si mesmo, desta vez em português.
VIII.
Se, como quer Walter Benjamin em seu célebre ensaio sobre
a tradução, esta permite que se realizem em outra
língua virtualidades lingüísticas que eram impossíveis
dadas as naturais limitações de cada linguagem original;
se todo texto é parte de um texto universal e coletivo que
nós, homens, vamos urdindo (como crê, ou finge crer,
Borges), então esta conjunção galática
entre Octavio Paz e Haroldo de Campos atualiza essa virtualidade
ao oferecer esta nova metamorfose de "Blanco". O poema
é outro, e é o mesmo.
IX.
Minha modesta contribução a este diálogo (estas
breves palavras) encontra sua justificativa no fato de eu haver
tido o privilégio de publicar antecipatoriamente em Mundo
Nuevo (Paris, outubro de 1967) o fragmento IV de "Blanco",
à época em que o poema ainda estava inédito.
Por motivo desta publicação, Octavio Paz enviou-me
uma extensa carta (9/abril, 1967), cuja primeira parte não
apenas da indicações precisas sobre aspectos fundamentais
do poema como também explica minuciosamente (valendo-se até
de diagramas) como o texto deve ser espacializado tipograficamente
na revista. Em apêndice, encontrará o leitor o trecho
relevante desta carta de Paz. Incorporei-o a este diálogo
galáctico porque tem a mesma temperatura ígnea. Fica
assim completo o dossiê "Blanco/Branco",
à disposição do leitor.
NOTA:
Para tornar mais fluente a leitura, deixei para esta nota final
a identifição de certas fontes. O texto de Borges,
aludido na seção II, é "El enigma de Edward
Fitzgerald" e foi incorporado pela primeira vez em Otras
inquisiciones (Buenos Aires, Sur, 1952). Tem sido inúmeras
vezes reproduzido nas edições de Obras completas
do escritor argentino. Comentei alguns dos exemplos da seção
III nos prólogos e introduções à minha
antologia da literatura latino-americana, The Borzoi Book of
Latin American Literatures (New York, Knopf, 1977; segunda edição,
1983). Os artigos de Mário de Andrade sobre literatura argentina
dos anos vinte foram exumados em meu pequeno livro, Mário
de Andrade/Borges (S. Paulo, Perspectiva, 1980). O texto de
Benjamin citado em epígrafe, assim como o mencionado na seção
VIII provêm de "A tarefa do tradutor", encontrando-se,
em espanhol, no volume intitulado Ensayos escogidos (Buenos
Aires, Sur, 1967) e, em português, na revista Humboldt,
n. 40/1979 (Munique, Editora F. Bruckmann). O de Borges (também
referido na seção VIII) pertence a um ensaio, "La
flor de Coleridge", recolhido no já mencionado Otras
inquisiciones. O fragmento IV de "Blanco" (de "Un
pulso, un insistir..." até "La transparencia es
todo lo que queda") foi publicado em número especial,
dedicado ao erotismo, da revista Mundo Nuevo, por mim então
dirigida em Paris. O texto foi impresso segundo as instruções
do autor.
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