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"Cerimônia de adeus"
Por Jorge Luis Borges
En Jornal do Brasil, Caderno B, especial, 16/02/1986
p. 8.
"Nos Estados Unidos, não sei se em Yale ou em Columbia,
E. R. M. me disse que pensava em escrever uma biografia fantástica
minha, quer dizer, não uma biografia do que havia ocorrido,
mas do que podia haver ocorrido.
Eu disse que ele podia fazer isso melhor que eu, já que
havia passado grande parte de sua vida estudandome, não sei
porqué, me parece uma perversão, uma maneira notória
de perder tempo, em todo caso. Bem, que seja enfim. Ele, sem dúvida,
conhecia o que se convencionou chamar minha "obra", digo
entre aspas, porque não tenho obra, só uns tantos
rascunhos que foram publicados. Ele passou a vida estudando-os,
lendo-os, relendo-os, analisando-os, inventando-lhe méritos
que certamente não existem e ele conhece também todas
as datas da minha vida. Eu conheço apenas a data de 1899,
mas também não a recordo já que ninguém
poder recordar o momento de seu próprio nascimento ainda
que, segundo os psiquiatras, a recordação incluia,
tambén, a vida prénatal, o que me parece excessivo.
Então eu disse que ele podería fazer isso muito bem;
dizem que fez admiravelmente. Eu não li esse livro porque
é incômodo ouvir falar de si-mesmo.
Assim nesta casa não há um só livro meu, nem
mesmo um livro sobre mim, salvo um que é de todo inofensivo
porque foi publicado no Japão e foi escrito em ideogramas
chineses. De modo que não conheço esse livro e os
que o leram afirmam que é excelente, e tem que ser excelente,
já que se refere não à minha, relativamente
pobre, vida atual, mas a uma vida imaginária que tem que
ser muito mais rica; de modo que eu agradeço a E. R. M. esse
livro e mais ainda devo falar dele não só como estudioso
e como escritor, mas como algo muito mais importante, como amigo.
Eu creio que a amizade é realmente uma das paixões
de nosso países. Talvez a melhor; quando Eduardo Mallea publicou
um livro intitulado História de uma paixão argentina,
eu dizia: mas o que pode ser esta paixão? Tem que ser a amizade
já que a amizade é o que se sente ao longo de nossa
literatura. Por exemplo, no Fausto de Estanislao del Campo,
que impórta a paródia da ópera? absolutamente
nada; o que importa é a amizade dos dois parceiros. E em
Martín Fierro, quanto pode interessar a vida de um
desertor e de outro, um desertor do exército e o outro um
desertor da polícia que, misteriosamente, se põe do
lado do réu, que acaba de prender. Porém, não
obstante, se sente, entre esses dois criminosos, que existe uma
amizade. Bem, queria acrescentar que teria muita, mutia vontade
de voltar a ver Emir e agradecer a ele esse livro que sou indigno
de ler e que quisera estar em Montevidéu para voltar a vê-lo."
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